No primeiro momento o nome do filme pode parecer abstrato.
Problema resolvido na primeira cena, onde Val (Regina Casé) dialoga
com uma criança, Fabinho, filho dos patrões, e vimos que a empregada é privada
da convivência com a própria filha, e Fabinho, por sua vez, privado da convivência
com a mãe, questão problematizada pelo Menino ao perguntar a Val: Que horas ela volta? Por outro lado o título
do filme pode gerar uma falsa sensação de que a história permeará a ausência dos
pais na vida de Fabinho, e não a de Val, afinal o título do filme é sobre a
perspectiva da criança.
Rapidamente nos é apresentado que Val é fruto do lulismo, o
que pode gerar a ideia de um filme governista, a batalhadora e guerreira que trabalhando como doméstica consegue
mandar dinheiro para criação da sua filha e comprar bens de consumo como um espremedor
de laranja, um ventilador que segundo ela mesma “é de primeira classe”. Essa
visão governista cai por terra no momento em que esses próprios bens de consumo
adquiridos pela domestica são amontoados em seu minúsculo quarto de empregada,
o sonho da casa própria é ainda distante. Para Val o minha casa minha vida ainda não fez
diferença.
Apesar da perspectiva do filme não ser Fabinho, a relação
entre ele e a empregada é muito explorada na primeira parte do filme, criando
uma relação de 2ª mãe ou ama-de-leite. O já adolescente Fabinho faz parte de
uma família de rentistas sustentada pela herança recebida pelo seu pai, mas não
vê contradição nenhuma em gostar de Ramones e Joy Division. Explicitando aí um
dos pontos centrais da Classe A brasileira: A não-meritocracia da sua riqueza e
sua hipocrisia cega aos problemas sociais brasileiros.
O conflito do filme começa quando Val descobre que Jéssica,
sua filha que não via a maus explicados 10 anos, pede abrigo a mãe para fazer
vestibular em São Paulo. A distância da filha é explicada, afinal, Val não conseguiria
ganhar o que ganha como doméstica no nordeste, entretanto o que a teria
desmotivado a realizar visitas periódicas à filha? Será que existe alguma culpa
difícil de lidar por ter deixado a filha pra tentar uma vida em São Paulo? Ou simplesmente
isso não foi uma prioridade na vida dela? Enfim, ou essa é uma lacuna do filme
ou essa é uma questão da própria personagem que não consegue compreender seus
sentimentos, os enterrando seu interior.
Jéssica, talvez por não ter sido criada pela mãe, ou por ter
tido contato, segundo ela mesma, com um professor de história e um grupo de
teatro que abriram suas perspectivas, não possui impregnada nela o sentimento
de resignação e conformismo da mãe, quer fazer vestibular para mesma
universidade que o filho da patroa quer, a FAU (faculdade de arquitetura e
urbanismo da USP) escolha está vista como petulância desde o primeiro contato
com a família que emprega a mãe, ou até mesmo como sonho surreal, como se ela
dissesse que quer ter uma banda de rock ou se tornar bailarina do Bolshoi.
A cena de apresentação possui ainda uma frase peculiar de
Fabinho: algo como “ela também fala engraçado”. A menina
oferece uma cocada que é aceita por Carlos e rejeitada por Bárbara, o que
prenuncia a tensão latente que em seguida explodirá entre o casal. Mas se a
chegada da menina intensifica as tensões internas da família, a observação de
Fabinho toca num ponto de consenso mais amplo. O comentário é preconceituoso,
revela uma postura compartilhada e silenciosa em torno de Val (“também”) e a
ausência de dignidade de sua fala (“engraçada”). Nesse sentido, Jéssica é
apenas uma confirmação, não um novo jogador que leva à reflexão; e o primeiro
gesto por parte da família é enquadrá-la nos esquemas iniciais de compreensão
que, por não compartilhar do sentimento de resignação e conformismo, serão sistematicamente
desafiados por Jéssica.
O acordo inicial de Bárbara, a patroa, com Val era de que
Jéssica seria hospedada, mas dormiria num colchão no chão do quarto de
empregada. Acordo que foi quebrado por Carlos, o patrão, que visivelmente se
interessa fisicamente por Jéssica, e assim oferece a ela uma vaga no quarto de hóspedes
da casa, e ainda tem o cuidado de apresentar a casa inteira para, agora hóspede,
Jéssica. Todo esse processo de apresentação da casa é acompanhado por Fabinho,
que preocupando com o fato de ainda ser virgem a vê como uma chance de resolver
essa questão. O interesse dos dois homens da casa na filha da empregada desenha
que chamarei de “Machismo de classe” onde ricos acham que pessoas de classes pobres
se interessaram fisicamente por eles pelo único e exclusivo fato de serem
ricos. Lógico que tudo isso vem junto de
bastante perseguição de Bárbara que não aceita o espaço ganho por Jéssica.
A entrada de Jéssica na história expõe um problema óbvio,
sua mãe conhece mais Fabinho do que sua própria filha. Jéssica fica feliz por
não mais dormir no quarto de empregada com a mãe, e Fabinho, sem sono, sai da
sua cama para receber carinho da empregada no minúsculo quarto. Em diversos
momentos esse carinho se mostra maior entre Fabinho e Val do que entre Fabinho
e Bárbara, sua mãe. O adolescente chega em determinado momento a dizer “eu te
amo” à empregada, o que nunca foi dito à mãe. Mas não se ilude, a frase “é como
se fosse da família” só diz que todos a amam como se ama um cachorro. Quem
possui cachorro sabe como é, nós o amamos, adoramos brincar com eles, adoramos
fazer e receber carinho, mas não temos nenhum problema em deixa-los sozinhos
quando vamos trabalhar ou em um lugar desconhecido quando vamos viajar por duas
semanas. E na casa, apesar de amarmos eles, os cachorros geralmente possuem um
lugar da casa para eles afastado das pessoas. A relação da família com Val
exatamente essa.
A problemática apontada por Que horas ela volta? incomoda as elites brasileiras. Me pergunto
quantas “Vals” a própria Regina Casé emprega, lógico que em momento algum o
fato da atriz e apresentadora não ser a própria personagem (tanto no filme
quanto no programa esquenta) diminui a validade do que ela expõe. Ela não é a primeira,
nem será a última hipócrita do mundo. Sinal claro do incomodo desse filme é de
ter sido lançado primeiro na Europa e no EUA do que aqui mesmo no Brasil, inclusive
na América Latina, o filme não foi publicado em nenhum outro país. Talvez isso
seja por uma falta de adesão do público com a questão, como se a personagem bastante
caricata da Regina Casé representasse somente uma comédia e não uma crítica
social, ou essa crítica social fosse menor. De fato, o filme não foi feito para brasileiros,
característica que pode inclusive levar o filme a ser indicado ao Oscar
(provavelmente para categoria de “melhor filme estrangeiro”). A indicação não é
novidade para a diretora e roteirista Anna Muylaert, também responsável
pelo filme O ano em que meus pais saíram de férias que no ano de 2006 foi pré indicado ao
Oscar. Torcemos por grandes prêmios, pois merece.
Ótimo texto!!! E ótimo filme. Só não chamaria de imediato a posição de Regina Casé como hipócrita. Acho que o problema que o filme levanta diz respeito antes ao modo de relacionamento entre patrão e empregado do que propriamente ao fato de ter empregado. Não sabemos que tipo de relação ela pode ou não estar tendo com seus empregados e, independente disso, as relações sempre tem diferentes matizes.
ResponderExcluirO que é relatado no filme, por outro lado, me parece ser uma herança histórica da elite brasileira de se entender mais como seres superiores do que como contratantes de um serviço de alguém. Tipo aquelas pessoas que se irritam quando um funcionário não gosta de algum comentário, como se entendessem que ao comprar a força de trabalho, compram também a opinião e crenças de seus funcionários.
De fato não é hipócrita, afinal qualquer ator interpreta outra pessoa, com outra personalidade. Talvez esse sentimento hipocrisia venha do histórico dela em seus programas em que, ao meu ver, ocorre a glamorização da pobreza de maneira vulgar até.
ExcluirConfesso ter dificuldade em separar a atuação da atriz com a própria atriz.