Temos assistido à
repetição de um forte discurso de alerta sobre a violência urbana, gerando o
medo e a necessidade de medidas “fortes” para conter a situação de insegurança
vivida nas grandes cidades. Reduzir a idade penal para conter a presença dos
adolescentes no crime; encarceramento em massa da população com aumento das
penas; aquisição de armamentos novos e mais eficazes para as polícias
militares; investimento em tecnologia de vigilância da população, criação de
batalhão de policiais preparados para impedir manifestações de rua; uso de
forças armadas para patrulhamento de espaços civis precarizados com a ausência
do Estado.
Não há dúvida de que a
considerada população vitimizada de fato sofra com a ocorrência constante de
crimes, dos mais corriqueiros e leves aos mais trágicos e horríveis. E nesta
sociedade agressivamente machista, especialmente as mulheres têm sido alvo desta
aparente desordem das cidades.
Contudo, há a produção de
eficientes máquinas de controle social fundamentadas no discurso da violência
urbana e na legitimação de políticas de uso da força na segurança pública, o
que têm alimentado uma violência desmedida e histórica por parte de agentes do
Estado. Ano após ano, em continuidade à lógica de combate ao inimigo interno
institucionalizada durante a ditadura pela doutrina de segurança nacional, o
Estado de Direito não tem obtido resultados positivos no incremento da
capacidade de uso da força por parte dos equipamentos de segurança pública.
Além de pouco modificar o quadro da forma de vida vulnerável dos grandes
centros urbanos, as informações publicizadas indicam o aumento constante da
violação de direitos por parte dos aparatos e agentes do Estado, com destaque
para o crescimento das cifras de brasileiros assassinados por ações de
instituições de segurança.
São chacinas operadas por
policiais e com apuração muito lenta, quase inexistente, pelos órgãos de justiça.
A autorização da ação violenta nas periferias contra os jovens atingiu seu
ápice de legitimação com a discussão e aprovação parcial na Câmara Federal da
redução da maioridade penal. Não é preciso tornar-se lei a definição social e
biológica do “inimigo”, mas é suficiente que o discurso social e das
instituições assim o considerem.
Parece esquizofrênico, mas
quanto mais o Estado é violento, mais o quadro social se apresenta como de
crise produzida pela violência urbana e mais se autoriza o investimento na
capacidade de uso da violência por parte das políticas de segurança pública.
Parece-nos que tal quadro não é o resultado de falhas ou má execução destas
políticas. Ao contrário, há neste processo a eficaz produção de uma sociedade
de controle, disciplinamento e punição, produzindo o cidadão domesticado e
manso, para que assim ele seja ainda mais produtivo sem tomar em suas mãos a
própria potência de agir politicamente. Do ponto de vista da eficácia desta
política de segurança pública é mais importante uma situação de violência
urbana do que de relações harmoniosas e ordeiras.
Parece haver um cálculo da aplicação da força por parte do Estado, dando à sua ação um aspecto teatral e espetacular, com o objetivo de produzir essencialmente dois efeitos práticos.
O primeiro seria a
disseminação do terror, mobilizando uma opinião pública com a sensação de
vulnerabilidade e alimentando o jogo do medo mantido pelo Estado, o que
institucionalmente e em larga escala ocorre ao menos desde a ditadura. Neste
contexto, pouco importa se as polícias têm a imagem de eficientes ou de serem
completamente desestruturadas. O segundo efeito é o de mostrar para a população
que a força aplicada será sempre que necessário acima da legalidade. Nesta
prática de segurança pública a lei funciona como um parâmetro de medida da
violência vinda dos agentes do Estado para aqueles que saírem da normalidade
social e política.
Exemplo trágico deste
modelo foram as chacinas de Osasco e Carapicuíba, levadas a cabo por policiais
agindo no formato dos antigos esquadrões da morte dos anos 70 e contando com a
impunidade – resultado da conivência das ouvidorias, da própria polícia e do
judiciário com os crimes do Estado. Se a grande mídia tenta colar a ideia de um
evento abusivo por parte de alguns policiais, a modificação da cena dos crimes
e de destruição de provas praticadas por policiais que atenderam as ocorrências
mostra a cumplicidade do sistema aomodus operandi. Segundo recente
relatório da ONU (de outubro de 2015), ocorre no país uma política sistemática
de “limpeza” dos centros urbanos sob a aparente justificativa de preparar as
cidades para os mega eventos esportivos (Copa do Mundo e Olimpíadas). No caso
de Osasco, a demora e os recorrentes “erros” nos procedimentos de apuração
estão produzindo o terreno para que não se coloque em risco a política atual de
segurança.
Assim, cria-se o cidadão
de bem, pacífico, trabalhador (ou proprietário) e ordeiro, e o vagabundo,
vândalo, louco, drogado, arruaceiro, o indivíduo fora das bordas que delimitam
o possível autorizado pela ordem. Desta forma, a combinação do jogo do medo com
a percepção de uma força acima das leis, a segurança pública em prática no país
visa demonstrar que o aparato jurídico é insuficiente para proteger os
cidadãos.
É por estas razões que
campanhas pela diminuição da maioridade penal ou pelo recrudescimento das leis
são vitoriosas mesmo quando não atingem seu objetivo aparente e discursivo. Não
é necessário alterar a menoridade ou aumentar a pena por determinado crime,
pois a pauta conservadora de seus debates já criam um imaginário e legitimam a
ação violenta e violadora por parte do Estado.
A legitimação da violência
do Estado não parece ser um engano ou falha do Estado de Direito, mas sim a
ação política de uma sociedade do controle e do bloqueio de suas potências
criativas e transformadoras.
Nenhum comentário:
Postar um comentário