Penso que há bons anos não via uma frase sintetizar tão bem
o estágio político e civilizacional de boa parte da sociedade brasileira. A
faixa estendida durante uma das últimas manifestações contra o governo, mirando
alvo esquerdista – mais especificamente os governos do ex-presidente Lula, da
atual presidente e o Partido dos Trabalhadores – foi de uma precisão mais que
cirúrgica, e porque não dizer profética, sobre as entranhas de um país que,
desde a sua colonização, continua a se revelar perverso, covarde e hipócrita.
Atirou no que viu e acertou no que não viu. A cordialidade brasileira é um mito
para inglês ver.
Saímos das margens da ditadura de fato para nadarmos até a
outra margem, a da democracia consentida, feita de uma justiça mais do que cega
e de discursos ocos de justiça social. De análises feitas em cima da perna e de
uma inacreditável esperança de “união do país” pela democracia, dos lugares
comuns como “o Brasil é maior que a crise que enfrenta” e coisas do gênero.
Somos uma mistura de cidadãos como o “Burunga” e um pouco
como o Admir, fiscal da prefeitura. Querem ver?
01 – Burunga, cujo nome verdadeiro ninguém sabia ao certo,
era exímio pescador. Tão exímio que, na sua última proeza, conseguiu esconder
numa velha garagem um Nissan Sentra, ano 2014, sem que os vizinhos dessem por
isso. Esperou três meses para tirar o carro da garagem, tendo tomado o cuidado
de trocar-lhe as placas. Por experiência própria e até por discretos contatos
em delegacias de bairros sabia ser três meses o tempo mais do que suficiente
para o dono do veículo surrupiado receber o dinheiro do seguro.No dia de
estrear o novo carrão, Burunga acordou cedo, engoliu o café às pressas e foi
até a papelaria comprar o adesivo especial que escolhera para colocar no vidro
traseiro do carro. Aí pelas dez e meia da matina, com o coração palpitando,
ligou a máquina, abriu a porta da garagem com cuidado e saiu sem muito
estardalhaço de casa. No vidro de trás o adesivo vistoso refletia a confiança e
a fé de seu novo dono: PRESENTE DE DEUS.
02 – Tão logo se aposentou, o “seu” Jairo, com a ajuda da
mulher Tânia, montou a sonhada lojinha de doces e salgados, onde a máquina de
fazer café, novinha em folha, era o orgulho dos donos. Inaugurada a lojinha, a
freguesia foi aparecendo, inclusive o fiscal da prefeitura, de nome Admir, há
trinta anos como fiscal, servindo a vários partidos de diferentes prefeitos.
Passou para ver “se estava tudo em ordem”. E estava. Para não perder a viagem,
o tal Ernesto, pediu uma “contribuição” para a inspeção feita, no que foi logo
contestado pelo dono. Com jeito o fiscal encontrou logo a maneira delicada de
dizer que, se não recebesse a contribuição, viria alguém para aplicar uma multa
ao estabelecimento. “Nós, os fiscais, somos uma família há muitos anos e dessa
o senhor não escapa”, sentenciou. E saiu porta afora. Dona Tânia, que ouvira a
conversa, sentou-se ao lado do marido e desabafou: “é isso aí, só podia ser com
um prefeito do PT… Tudo ladrão”.
Perceberam, não, irmãos? Que tal orar num templo de
seiscentos milhões de reais, ou até em outro mais simples, bater no peito e
levantar as mãos para os céus? Apontar o dedo para a corrupção alheia e fazer
aquela carinha “de não tenho nada a ver com isso”. Ou de “Deus ajuda a quem
cedo madruga”. Como alguns milhões de outros brasileiros que se têm na conta de
bem informados, Burunga, “seu” Jairo e dona Tâina, adoram a novela das oito e
o Jornal Nacional. O Faustão, o Fantástico, o BBB… Mas vamos adiante.
03 – A senadora Marta Suplicy, descontente com o rumo tomado
pelo Partido dos Trabalhadores ingressa no PMDB e em solenidade no Congresso,
ao lado dos presidentes das duas casas legislativas, ambos do PMDB, afirma que
irá combater firmemente a corrupção no país. Nada como a coerência, a abnegação
e a convicção ideológica da maioria dos nossos representantes no Congresso
Nacional.
04 – Jurandir, que graças ao hábito de só ir para a cama por
volta das três da madruga depois de umas latinhas de cerveja, ganhara o
carinhoso apelido de “vigilante noturno”. Considerava Fernandão seu melhor
amigo, desde que este lhe proporcionara ir trabalhar como free-lance numa
produtora de filmes publicitários. Fernandão era um entre vários produtores da
Cosmopolitan Filmes e Vídeos Ltda., encarregado, entre outras tarefas, de
conseguir locais para filmagens e contratação de modelos. Várias vezes fora aconselhado
a abrir sua própria firma para dar notas fiscais de seus cachês. Teimoso,
Jurandir disse que comprava suas notas e não queria complicações com
contadores. Resolvia tudo o mais rápido possível. Como muitos à sua volta o
Fernandão gostava de dizer: “pagar imposto para que? Não ganho nada com isso e
os políticos é que metem a mão na grana…”.
A senhora Marta Suplicy, veterana política e sexóloga
paulista, e o Fernandão sabem onde metem os bedelhos, com certeza. Sempre ao
lado do bem, a senadora não iria trocar de partido se não soubesse que a troca
continuaria a lhe granjear louvores pelos seus esforços contra a corrupção, os
chamados desvios do seu antigo partido. Afinal, nem todo dinheiro enviado para
a Suíça poderá ser considerado um dinheiro “sujo”. Sob “certos aspectos”,
grande parte da elite econômica brasileira já introjetou na sociedade, através
de seus principais porta-vozes na imprensa, e isso desde o final do império
pelo menos, que existe uma “corrupção do bem” e uma “corrupção do mal”. E,
portanto, transferir conceitos para frases como “bandido bom é bandido morto”
para “petista bom é petista morto” é apenas uma questão de tempo. Impressiona,
o silêncio do Ministério da Justiça.
Natural que se construísse também no país uma “justiça para
o bem” e outra “justiça para o mal”. Justiça para o bem é aquela que solta
‘habeas corpus’ em 48 horas para meliantes de gravata Hermés, que deixa nas
gavetas do judiciário alguns processos que irão prescrever num prazo previsto e
favorecerão construtores de aeroportos em causa própria, mas com dinheiro
público. Justiça que partidariza a própria justiça e, nos últimos anos,
transformou o STF num anfiteatro de peças e shows, alguns deles impróprios a
menores de idade, deixando de lado a discrição com a qual devem se comportar os
mais altos magistrados da nação. Já não tão altos assim, é verdade… Justiça
para o bem é essa que tem a qualidade moral do governador de São Paulo que
torna secretos por 25 anos os documentos do ‘metrolão’ paulista. Documentos secretos
de uma obra pública? Estranho, não?
Justiça para o mal é aquela que vê – além de negros, pobres,
nordestinos e algumas minorias – comunistas e petistas para todos os lados. Ou
bolivarianos, como gostam de dizer alguns que não entendem nada de bolivarianismo.
Justiça para o mal é aquela que permite a um delegado da PF (não confundir com
Prato Feito) abrir processo contra uma faxineira que comeu um de seus bombons
sem autorização. É aquela justiça que prende petistas por “ouvir dizer”,
julga-os e os condena mesmo sem provas, mas não investiga bandidos com contas
secretas na Suíça, por exemplo. Ou o Banestado, ou Furnas, ou a
Privataria, ou, ou, ou… Que não vê nada de mais em juízes relatarem e julgarem
processos em que têm interesses pessoais em jogo.
E assim caminha o Brasil nesse já quase final do ano de
2015. Entre a irresponsabilidade política da direita, esse ajuntamento de
intolerantes que resolveu achincalhar com a constituição do país em nome de uma
democracia que ninguém sabe qual é, e a inabilidade da esquerda, até o momento,
para enfrentar essa intolerância e os desatinos que se cometem diariamente.
Desatinos de um moralismo que nada mais faz do que tentar esconder os dejetos
mal cheirosos da desigualdade social que já dura entre nós há mais de
quinhentos anos.
É verdade: somos milhões de Cunhas. Pena que a maioria de
nós não tenha contas na Suíça ou outros paraísos fiscais, não é mesmo?
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