A história de
três mortes brutais. Eduardo Campos, candidato à Presidência da República,
sofre um acidente de avião e tem sua vida interrompida. Um atentando em Paris
executou friamente cartunistas da revista francesa Charlie Hebdo. E a alguns
meses, numa ação muito pouco justificada, a Polícia Militar da Bahia matou 15
jovens negros, que, ao que tudo indica, foram torturados, humilhados, quando já
rendidos. Três episódios, mas somente dois causaram comoção coletiva.
Racismo,
pobrefobia, idolatria do Norte Global e produção social da indiferença são
algumas das razões que explicam a desigualdade afetiva diante da morte. Durante
o atentando em Paris, o tema da comoção seletiva foi bastante discutido. Por
que, afinal de contas, algumas mortes comovem mais do que outras? Sobre a
questão da identificação durante a cobertura da morte de Campos. Havia um
sentimento forjado de proximidade. Ele tinha aparecido em rede nacional no dia
anterior. Imaginávamos que podia ser nós naquele avião. E, claro, era jovem,
branco e de olhos claros. No Charlie Hebdo foi diferente, já que em casos de
terrorismo contra países desenvolvidos a mídia internacional ajuda na
“espetacularização”. Junto a isso, as elites intelectuais brasileiras
contribuíram para a comoção: incorporaram a hashtag, mandaram fotos da marcha
de Paris e, claro, mostravam suas ligações com a revista e com a França. Não há
absolutamente nada de errado com nenhuma dessas atitudes. Eu me horrorizei com
ambas as mortes e me solidarizei profundamente com as vítimas. Só que, se a
comoção seletiva da morte é construída por meio da identificação, apenas não
acho palavras para justificar o silêncio perturbador e a indiferença em relação
aos 15 meninos negros, pobres e rendidos. Não nos identificamos também com
essas pessoas? Por quê?
A dor e o amor
são sentimentos socialmente construídos. Isso significa dizer que a cultura
influencia nossos padrões afetivos. Mas mais do que cair numa explicação vulgar
culturalista, é importante situar esse conceito dentro de uma perspectiva da
hegemonia de Gramsci, em que a cultura é tecida entre valores e interesses
dominantes do establishment. A nossa comoção por uns e não por outros é,
portanto, um fato ideológico e reflete – para nós brasileiros – uma dominação
que é contra nós mesmos: ela reage a um imaginário branco que nega o fato
elementar de que somos uma sociedade predominante negra. Matamos a nossa própria
singularidade.
Se todo o
silêncio sobre esse genocídio se justifica “porque, afinal, isso é triste, mas
ocorre todos os dias”, então, eu preciso dizer, sem medir minhas palavras, que
isso é um ato de canalhice intelectual. Somos, então, uma máquina concomitantemente
passiva e ativa da biopolítica estatal. Passiva porque deixamos o Estado
gerenciar as vidas humanas que valem mais, mas somos ativos com nossa
indiferença à violência estrutural e ao sofrimento social: ao nos indignarmos
com um tipo de morte e ignorarmos outro tipo, somos parte da
“governamentalidade” que “deixa morrer” – como diria Foucault. Fazemos uma
escolha do tipo de morte que vale sofrer e, portanto, dizemos o tipo de vida
que merece existir.
Dando
continuidade ao conceito de política da vida de Michel Foucault, a política da
morte. Ele versa sobre a vida nua daquele que nasce em um grupo cuja existência
não conta como vida e é, portanto, destituído de direitos. Os 15 jovens negros
da periferia são atualização desse homo sacer: corpos nus, violentados,
excluídos da lei. Eles são amostras de um permanente Estado de Exceção, que
suspende a lei e pratica a morte em massa. O Estado brasileiro hoje, enquanto
estrutura (e não enquanto um governo, um partido ou um ator social em
particular), adota a política da morte. E isso é legitimado socialmente –
quando não desejado conscientemente – já que a cultura produtora de emoções é
um produto ideológico. Basta ver as reações – ou melhor, a não reação – às
declarações do governador da Bahia que disse que o fuzilamento era como um
artilheiro diante do gol.
A não-tomada de
posição é uma tomada de posição. Somos parte do establishment e conveniente com
modo operante assassino que perpetua no Brasil. Julgamos aqueles que, de forma
mais consciente, dizem que bandido bom é bandido morto, mas é exatamente isso
que permitimos quando ignoramos a morte desses jovens. Qual a dimensão da
indignação nas suas redes sociais pelo o que ocorreu? Nenhuma! Talvez vocês nem se lembrem disso. Reproduzimos a
indiferença social sobre essas “vidas nuas”: as populações vulneráveis
indígenas, negras, homossexuais e pobres. Choramos a morte de artistas
franceses – e justificamos que há um crime maior em jogo: a liberdade de
expressão. Concordo. Eu apenas penso que, por de trás daqueles meninos
executados sem qualquer justificativa plausível, também temos algo maior em
jogo: a construção de uma sociedade livre, democrática, justa, diversa, em que
todos os corpos valham a mesma coisa.
Mais trágico do
que a estupidez da morte, somente a miséria humana de nossa indiferença.
Nenhum comentário:
Postar um comentário